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quarta-feira, 18 de março de 2015

Meu único olho está aberto

Ele chutou minha boca, perdi alguns dentes, já estava quase inconsciente. Não tinha mais lágrimas, foram gastas enquanto era estuprada. Apagaram charutos no bico dos meus seios, perdi as contas dos cuspes, não ouvia mais risos ou gritos de ordem, a consciência como em desespero pela vida lutava sozinha em continuar em pé, a dignidade estava afundada em fezes que acabei expelindo involuntariamente.


Mentalmente pedia a Nossa Senhora que me levasse, mas eles surgiram na sala com o meu filho de dois anos no colo. Ele chorava descontroladamente. E nem mesmo um tapa desferido em seu indefeso rosto dado por um deles, o fez calar. A criança chorava ainda mais, sua pele foi ficando vermelha, tentei gritar e recebi mais um chute no rosto e acabei apagando.


Acordei em um local diferente, com muitas dores, coração na boca. Não tinha ninguém pouca luz, não conseguia falar, muito menos gritar. Um homem entrou rindo no que parecia ser uma cela. Disse que eu não tinha mais família e nem vida. Eu não conseguia chorar, apenas olhava em seus olhos, sem saber o que fazer... Ele contou que meus pais, marido e único filho haviam sido mortos, e que eu seria a próxima. Mentalmente supliquei para Deus que de fato isso acontecesse, que eu morresse ali.


Não morri. Acordei e dormi, fui violentada outras vezes, perdi o tempo e a noção que fiquei ali. Engravidei e perdi o bebe, fruto de um dos estupros, perdi em uma das dezenas de sessões de tortura que continuei sofrendo.


Um dia acordei e estava deitada em um mato, com terra no rosto, sol e vozes. Eram crianças, estavam assustadas. Eu estava nua, e mal conseguia falar, não podia levantar. Fui socorrida por pessoas que viviam naquele lugar, finalmente pessoas com olhares de pessoas.


Quando voltei, descobri que não havia perdido meus pais e filho. Meu jovem marido procuro em meus sonhos até hoje, não consigo encontra-lo há anos, nem mesmo nos sonhos. Meu filho (graças a Deus) não cresceu com sequelas, vive relativamente bem. Meus pais já foram para o outro plano. Nunca mais consegui me relacionar com outro homem, perdi parte dos movimentos, fiquei cega de um dos olhos e tenho vergonha até hoje dos cortes profundos em meu rosto.


Nunca deixei de acreditar ou sonhar com dias melhores para todos. Em igualdade, justiça social e liberdade. Mesmo nos piores momentos. Apoiei, desacreditei, votei, levantei bandeiras, critiquei, tive e tenho orgulho de colegas dos tempos cinzas, como não concordo com outros. Pintei a cara, fiz caminhada pela paz, fui para as ruas tantas e tantas vezes, não vou bater panela (pois ouvir também é democrático), mas fui para a Paulista novamente. Mesmo acreditando que escolhi nas urnas talvez a melhor opção, ainda sou povo e tenho o direito de manifestar, como não aceitar alguns acordos políticos que colocam grandes canalhas em posições confortáveis.

Quando se sofre na pele e na alma o sabor da truculência, é impossível tentar usar as mesmas armas. Por isso, quando vi jovens, adultos e até pessoas da minha idade pedindo o fim da liberdade, quando vi um daqueles que socaram meu filho, que chutaram meu rosto, vestido de fraque, sendo homenageado, sorrindo e dançando em um palanque, resolvi voltar para casa, mais uma vez não chorei, o ódio não morre tão fácil, mas o calei mais uma vez. Depois pensei e descobri que eu sou uma vitoriosa. Se hoje o assassino do meu marido tem a liberdade de dançar de fraque em uma manifestação pública, foi graças ao sangue dele, meu e de tantos outros que lutaram por isso, a liberdade de pensar diferente. Nós vencemos!


Não vou desfraldar minha velha bandeira vermelha na porta da minha pequena casa, ainda discordo de inúmeras decisões tomadas pelo atual governo, mas enquanto esses moços e moças continuarem a pedir algo que é contra a liberdade, perderão uma velha parceira de lutas.

Estou com meu único olho bem aberto.

Liberdade só existe respeitando a democracia.



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